segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

Um cheirinho a liberdade


Estabelecimento Prisional Feminino de Santa Cruz do Bispo
Um cheirinho a Liberdade

46 reclusas terão, este ano, a oportunidade de partilhar o Natal com a sua família, longe da prisão. Outras- a maioria- estarão na sua cela, no momento em que se rasgar o papel de embrulho das prendinhas à meia-noite.
- “O Tony Carreira ligou-me há pouco a dizer que já estava a caminho!”.
- “Não sejas mentiroso! Quem vem é o filho! É o Mickael Carreira!”.
As reclusas do Estabelecimento Prisional Feminino de Santa Cruz do Bispo sabem que não é verdade, mas, ainda assim, riem e aplaudem as brincadeiras das apresentadoras da Festa de Natal. Duas reclusas bem dispostas recriam o casal de bêbedos Agostinho e Agostinha, celebrizado por Ivone Silva e Camilo de Oliveira.
A Festa de Natal é sempre um momento de muita animação e convívio. Por algumas horas, troca-se a cela pelo pavilhão desportivo. Recordam-se os momentos alegres vividos em família, celebrando o companheirismo e, em alguns casos, a amizade entre reclusas. Guardas prisionais, funcionários, membros da direcção assistem ao desfile de talento no palco.

Presentes no sapatinho
“Ela é que é a nossa Relações Públicas”, diz uma reclusa. E com razão. Mariana (nome fictício) tem o dom da palavra e o discurso desenvolto. O sorriso franco convida-nos a sentar por momentos e a conversar como se estivéssemos no café e não numa cadeia.
Mariana tem a sua filha mais nova ao colo. A menina tem apenas 14 meses de vida e nasceu na prisão. Os seus irmãos são mais velhos e, como tal, estão no exterior. A mais velha tem 16 anos. Seguem-se os rapazes, um com 13, outro com 10 anos.
Dos seus quatro filhos, a mais nova é a única que permanece consigo, até porque a lei permite que as crianças até aos três anos mantenham o contacto regular com as mães.
O Estabelecimento Prisional Feminino de Santa Cruz do Bispo tem inclusivamente uma creche para crianças até ao limite dos três anos, altura em que se dá a resocialização da criança. Durante o dia, são as educadoras de infância que tomam conta dos mais pequenos.
As mães levam os seus filhos de manhã à creche. Ao fim da tarde, vão buscá-los como se estivessem em liberdade.
Actualmente, a creche é frequentada por 13 crianças. Manter o espírito natalício é, por conseguinte, fundamental, nas palavras da directora Fernanda Barbosa: “Mesmo em cadeias onde não há crianças é fundamental, porque o Natal apela a todos os nossos bons sentimentos. Para as pessoas que estão aqui detidas, mesmo que seja apenas um período de transição, é sempre um período mais doloroso, porque se lembram das famílias. Pensar no Natal pode levá-las a reformular muito a sua vida. Apelamos aqui muito aos sentimentos de família, de pensar nos outros. O Natal também nos obriga a pensar mais nos outros. Se elas pensassem mais nos outros, com certeza não vinham presas”.
Mariana recebeu a feliz notícia de que este ano vai a casa passar o Natal com a família. “Felizmente, vou passar sete dias a casa e depois vou passar a Passagem de Ano também a casa. Vai ser muito gratificante para mim e para a minha família”, confessa. Mariana tem apenas 33 anos. Está há dois anos na prisão, a cumprir uma pena por tráfico de estupefacientes, por ter servido de correio de droga.
Passar o Natal em casa foi o melhor presente que poderia ter recebido este ano: “Não desejo a ninguém passar o Natal na prisão. O único que passei aqui foi no ano passado. A experiência foi péssima. Não consegui comer. Não consegui estar. É uma época muito triste. Acho que toda a gente sente o espírito natalício que normalmente se transmite, mas eu acho que, para quem tem filhos, sente-se mais, porque os filhos e os presentes têm aquela simbologia pessoal que marca sempre um bocado mais, não é?”.
Ao “Matosinhos Hoje”, Mariana explicou como é celebrada esta data tão especial em família: “O Natal em minha casa é com toda a família reunida, desde sogros, pais, filhos, irmãos…é um Natal bastante gratificante, porque reúne praticamente toda a gente. Fazemos a consoada. O bacalhau obviamente não pode faltar. Optamos também por peru ou cabrito assado. No dia seguinte fazemos o habitual farrapo velho. Não falha. É essencial”.
O convívio com a família foi o que mais sentiu falta no ano passado. “Os meus filhos, pela idade que têm…nunca me separei deles, nunca tinha passado um único dia longe deles e deparar-me assim, principalmente no Natal…Na altura, a minha mais nova tinha três meses de nascimento. Tê-la aqui e estar separada dos irmãos, sabendo que eles queriam muito estar com ela, foi muito complicado. Foi difícil”, admite.
E agora? “Se Deus quiser e se tudo correr bem, faltam-me oito meses de prisão para o meio da pena. Poderei sair a meio da pena. Pelo crime que cometi, tive uma condenação de cinco anos. Se me for concedido, saio aos dois anos e meio. Se não, terei que esperar mais um ano e oito meses”, adianta Mariana.
Bem mais pesada é a pena de prisão que Rosa (nome fictício) está a cumprir no Estabelecimento Prisional Feminino de Santa Cruz do Bispo, também por tráfico de droga.
Pela primeira vez em sete anos e oito meses, Rosa vai poder ir a casa passar o Natal com a família. O cabelo comprido, o tom de pele, as feições não enganam. Dentro de si há uma alma cigana. Por detrás dos olhos brilhantes, existe uma mãe. Um mãe que regressa a casa para reaver o seu filho, hoje com 18 anos.
“Já passei aqui vários Natais. É um bocado difícil estar distante da nossa família. Passei por vários problemas com a família. Perdi os meus pais. Estava aqui dentro e foi muito difícil. Agora vou passar este ano o Natal a casa. É o primeiro. Estou muito feliz. É diferente. Vou passar cinco dias e 12 horas a casa. Depois já vou a casa de seis em seis meses e se conseguir o regime aberto, já vou de três em três meses”, adianta.
Como é o Natal em sua casa? “É com a família, todos juntos. É muito bom. Comemos tudo. O bacalhau, o feijão, o grão. É um Natal muito tradicional”, descreve.
Rosa tem 34 anos. Foi mãe muito jovem, com apenas 15 anos. Talvez, por isso, seja mais difícil não poder acompanhar o filho numa quadra tão importante como esta: “É muito difícil passar o Natal na prisão. São dias em que a gente chora muito, porque estamos afastados daquilo que mais adoramos na vida, que são os nossos filhos. Para mim, é uma dor muito grande, muito forte. A melhor coisa que me podia ter acontecido na vida foi ir a casa no Natal. Foi a melhor prenda de Natal, porque já foram sete Natais aqui dentro. Pensava muito na minha família. Estamos fechadas e choramos muito na cela. É muito difícil, mas este ano vai ser diferente, se Deus Nosso Senhor quiser”.
Rosa tem ainda mais três anos de pena de prisão pela frente, ou seja, mais três Natais.

A ceia na prisão
Para quem não tem a sorte de ir a casa pelo Natal, a direcção do Estabelecimento Prisional Feminino de Santa Cruz do Bispo prepara uma ceia de Natal mais elaborada com tudo o que é tradicional, desde o bacalhau cozido às rabanadas, os chamados “mimos de Natal”.
“Nessa altura, há mais cuidado até a por as mesas no refeitório, mais cuidado na decoração. Este ano venho cá conviver um bocadinho com elas. Trabalhei 23 anos no Estabelecimento Prisional do Porto, onde ia sempre no Natal. Aqui obviamente vou fazer igual”, assegura.
Fernanda Barbosa abdicará, então, de um pouco do seu tempo com a família para partilhá-lo com as reclusas: “Para mim, acho que é o período mais difícil, porque custa-me sempre ver as pessoas presas numa noite destas, que é uma noite com muito significado. Comovo-me muito, mas, ao mesmo tempo, sinto-me muito gratificada”.
Das 254 reclusas, apenas 46 terão a oportunidade de celebrar o Natal em casa. “Para irem a casa, elas têm que ter cumprido já um quarto da pena. Candidatam-se a beneficiar de uma medida de flexibilização de pena. As candidaturas vão a Conselho. Se o Sr. Dr. Juiz achar que a nossa exposição é consentânea com as normas que a lei diz, defere a saída precária. Depois há outro tipo de saídas. Há saídas de 48 horas de reclusas que já beneficiaram de saída precária. Essa concessão é dada pelo director do estabelecimento e pelo Conselho Técnico”, esclarece Fernanda Barbosa.

Festa de Natal
Como todos os anos, o Estabelecimento Prisional Feminino de Santa Cruz do Bispo promove a Festa de Natal.
Este ano, a iniciativa teve lugar na passada quinta-feira e contou com a presença de um grupo de elementos da Academia de Música de Espinho.
Seguiram-se as actuações da chamada “prata da casa”. Um grupo de reclusas mostrou o que vale na dança cigana, música brasileira, bachata, hip-hop e kizomba. O público não aguenta estar sentado. Levanta-se e acompanha com palmas os ritmos quentes.
O Pai Natal também marcou presença e entregou brinquedos às crianças. As mães puderam assistir a um vídeo com as fotografias dos seus meninos e meninas. As mesmas carinhas ilustravam uma estrela que decorou a árvore de Natal. Em vez de bolas, as imagens dos bebés embelezaram os ramos do pinheirinho.
“Adorei a festa! O que mais gostei? Da dança, obviamente. Isto é um espírito, se calhar o mais sensível, para as reclusas. Acho que a dança eleva o nosso espírito natalício, porque é a altura em que estamos mais sensíveis, algumas por não poderem ir a casa. Depois do Natal, as férias escolares são outra altura com­pli­cada”, afirma Mariana.
Também Rosa ficou muito satisfeita com a Festa de Natal: “É muito importante para nós que estamos aqui. Esta festa põe-nos um bocado mais alegres. Conseguimos esquecer por um bocadinho que estamos aqui. Gostei de tudo, princi­- palmente de ver as crianças. Eu adoro crianças!”.
O Estabelecimento Prisional Feminino de Santa Cruz do Bispo funciona em parceria com a Santa Casa da Misericórdia. Além do sector laboral, a Santa Casa da Misericórdia tem a seu cargo a animação. “Esta festa foi concebida numa interacção entre os Serviços de Educação, a Directora e a Santa Casa da Misericórdia, que acabou depois por tomar as rédeas da festa. As reclusas estão envolvidas ao longo do ano em diversas actividades, designadamente a dança, e estão a preparar-se para estes eventos e apresentarem os seus trabalhos ao resto das colegas. Tentamos aqui muito recriar o ambiente familiar”, salienta.
Em tempo de Natal, a directora Fernanda Barbosa não quis deixar de enviar uma mensagem de esperança às reclusas do Estabelecimento Prisional Feminino de Santa Cruz do Bispo: “Eu queria que elas vissem este período como um período de transição para uma vida nova. O que eu desejo é uma vida nova para elas, porque uma das coisas mais importantes da nossa vida é a liberdade. Se elas puderem realmente enveredar por outros caminhos e nunca mais voltar, para mim será uma grande alegria”.
Fernanda Barbosa defende uma segunda oportunidade para estas reclusas, alertando para os problemas de estigmatização, muitas vezes, criados pela sociedade. “Isto é um período temporário. Penso que nós, seres humanos, temos uma capacidade incrível para dar a volta e mudarmos aquilo que consideramos que não está bem. As mulheres são muito fortes e se, realmente, estiverem empenhadas em encetar um novo projecto de vida, eu tenho a certeza que conseguem. As mulheres têm até mais facilidade até de arranjar emprego, designadamente nas limpezas. Basta querer, com muita força e fazer por isso”, conclui Fernanda Barbosa.
Por esta hora, Rosa e Mariana estão já em casa, a reunir os ingredientes para a consoada de logo à noite. O bacalhau, os grêlos, as batatas, o peru, o vinho, as migas, as rabanadas, o bolo-rei, o pão-de-ló, a aletria, estão em vias de preparação. Tudo vai ficar pronto a tempo e horas. A família está quase a chegar.
O melhor presente de Natal não foi a chave milionária do Euromilhões, não foi a Playstation, não foi o último CD do Tony Carreira, não foi o último livro do Nicholas Sparks, não foi o colar de pérolas, não foi o computador portátil nem a carteira em pele. O melhor presente de Natal não foi a liberdade. Foi o reencontro com a família.
Rosa e Mariana. Este é o meu presente para vocês. Feliz Natal.


by Dulce Salvador in "Matosinhos Hoje" ( 24-12-2008)

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