domingo, 4 de janeiro de 2009

Sonhos desfeitos


Vieram para Portugal à procura de uma vida melhor

Sonhos desfeitos

Um ucraniano e um russo passaram o Natal numa gruta à porta da Igreja do Senhor de Matosinhos.
Quem atravessa o adro da Igreja Matriz do Senhor de Matosinhos depara-se com uma casa improvisada. O tapete, à entrada, dá as boas-vindas. Todavia, nem todos entram para deixar comida ou agasalho. Sim, ainda há quem tenha coragem de roubar quem mais nada tem do que a roupa que traz no corpo.
Um ucraniano e um russo partilham uma das grutas. Durante o dia, percorrem as ruas, pedindo esmolas para poderem comer. À noite, regressam “a casa”, tentando aquecer-se com alguns cobertores e casacos. Quando precisa, toma banho no lago. O frio é insuportável. A vida nem sempre foi assim.
Viktor (nome fictício) tem 31 anos. Nasceu na Ucrânia, mas não pensa regressar um dia à sua terra natal: “Não quero voltar à Ucrânia. Lá só há más pessoas. O nível de vida é muito pior. É melhor viver aqui na rua do que lá. É perigoso. Muita pobreza. Não há trabalho. A carne é mais cara lá do que aqui”.
A sua família foi fortemente afectada pela tragédia de Chernobyl.
Recorde-se que, a 26 de Abril de 1986, o reactor número quatro da central nuclear sofreu o maior acidente conhecido na história. Com a explosão da estação de Chernobyl foram enviadas 190 toneladas de urânio radioactivo e grafite para a atmosfera.
Os efeitos das radiações foram tardiamente divulgados. Os seus familiares mais próximos, como o pai e a avó, acabaram por sucumbir às doenças oncológicas.
Danya (nome fictício) aconselha Viktor a não falar connosco nem a deixar-se fotografar. Afinal, os dois encontram-se no país em situação ilegal. A gruta da Igreja do Senhor de Matosinhos tem servido de refúgio já lá vão mais de duas semanas, mas não deverá continuar a sê-lo por muito mais tempo. O mais tardar, depois do Ano Novo, terão que encontrar um novo abrigo.
Danya não resiste a entrar na conversa. Pergunta-me se sou do Leixões. Porquê? “Porque eu sou russo, mas sou do Porto!”, responde, mostrando-me, com orgulho, um cachecol às riscas azul e branco. Viktor também é um adepto portista, mesmo estando em Matosinhos, a terra do Leixões: “Não, os do Leixões são todos benfiquistas”.
Viktor chegou a Portugal em 2001, por intermédio de um colega ucraniano. A busca por melhores condições de trabalho não correu bem: “Vim para cá à procura de uma vida melhor. Na Ucrânia era soldador. Paguei 1200 euros para vir para cá e eles roubaram-me. As pessoas da minha terra roubaram-me. Eu paguei tudo. Eles prometeram-me que cá tinha trabalho, tinha casa, tinha tudo. Quando cheguei a Lisboa, não tinha nada”.
Viktor tentou arranjar trabalho para sobreviver, mas foi difícil encontrar gente séria e honesta. Trabalhou em Lisboa a descarregar camiões, depois foi para Sines, trabalhar na linha de comboios.
“Eles enganaram-nos. Mandaram muitos portugueses e ucranianos embora. O patrão só quis fazer dinheiro. Não quis ajudar as pessoas. Fez contratos falsificados. Nós assinamos, mas eles não fizeram nada. Fiquei sem trabalho. Telefonei para algumas pessoas que me arranjaram trabalho na Póvoa de Varzim”, conta.
Viktor rumou, então, ao norte do país para trabalhar numa fábrica de blocos para construção civil na Póvoa de Varzim.
Ao fim de um ano e meio, ficou novamente sem trabalho. O ucraniano mudou-se para Vila Nova de Gaia à procura de uma vida melhor, mas a sorte não esteve do seu lado: “O patrão era má pessoa. Trabalhei para ele, mas ele só pagou o primeiro ordenado. 350 euros. Disse-me que eram só 350 euros, porque eu era servente. Mas eu fui trabalhar como trolha. Tinha que receber mais”.
Seguiram-se cinco anos de trabalho na Maia, numa fábrica de alumínios. “O patrão roubou, emprestou muito dinheiro. Ele disse que o negócio da fábrica estava a correr bem, mas depois começou a correr mal. Não conseguiu pagar o que tinha emprestado”.
Viktor já viveu no Porto e em S. Mamede de Infesta. Neste momento, a sua actual morada é uma gruta em Matosinhos.
Há oito meses sem trabalhar, o seu principal meio de sustento é a generosidade dos portugueses.
“Eu preciso de trabalhar. Roubaram-me os documentos todos. Sem trabalho, não posso arranjar. As pessoas têm medo dos ucranianos”, afirma.
Viktor sabe que, a qualquer momento, pode ser interceptado pelas autoridades e ser recambiado para a Ucrânia, ao fim de dez dias de ser notificado.
Como tal, o seu principal objectivo para o ano que agora começa é arranjar um emprego.

Um amigo chamado Smart
A principal companhia de Viktor é Smart, um cão preto, que não sossega enquanto conversamos. A brincadeira evita a solidão.
“Ui, Jesus. Ele aquece à noite. Se não fosse ele, não sei o que seria. Uma vez apanhei tanta chuva. Estava todo molhado. Corpo a corpo, nós aquecemo-nos”, explica.
Viktor gostava de permanecer em Portugal. O que mais gosta daqui? “As pessoas. São generosas. Em Portugal, é tudo mais calmo, tranquilo. Aqui ninguém faz mal como na minha terra. Na Ucrânia, as pessoas são falsas, só roubam. Quem faz mal aqui são pessoas da minha terra. Roubam telemóveis, dinheiro”, desabafa.


by Dulce Salvador in "Matosinhos Hoje" (31-12-2008)

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